A fenda
1 min readApr 17, 2020

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Aconteceu ontem à noite. Abri um vinho e Cinderela bateu à porta. Deixei que ela entrasse. Nem disfarçou. Chegou sem pudor, como se não lembrasse que não era convidada há tempos. Pior. Ela não tinha envelhecido em nada. Mesmíssima figura. Saltitava, a coitada. Os olhares estranhos nem eram notados. Cabelos longos, olhos claros, pele alva.

O vestido também era o mesmo. E talvez nem se notasse. Mas um pouco mais de atenção e se percebia: o tecido cheirava a guardado. Manchas amareladas dos tempos de armário. E ela. Fingia ou não fingia que se percebia.

Fato é que entrou. Desbravou tudo. Sem mirada ou reflexão.

Não viu, entretanto, que entre as tábuas do piso havia um desnível. Tropeçou longamente. Como se caísse em slow motion, claro.

Joelho e mãos sangravam. Não chorou. Mas os olhos eram água.

Levantou-se e achou prudente pegar um biscoito e aceitar o chá. Recostou-se na cadeira. Observou. Decidiu que podia ficar por ali.

Dançaria, quando necessário fosse.

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A fenda

Divagações sobre o cotidiano. Tentativa de exercício de escrita. Poço fundo. Brecha. Ruptura. Fenda.